A fotografia carioca por um olhar francês

Vincent Rosenblatt, que há 16 anos tem como residência o Rio de Janeiro, retrata o avesso da cultura "mainstream"

Publicado em: 31/01/2019

Vincent Rosenblatt não só faz dos bailes funks cariocas seu instrumento de trabalho e expressão artística mas como também os vivencia em seu íntimo, participando diretamente do cotidiano das comunidades e favelas do Rio de Janeiro. De suas fotografias, que retratam a forma mais crua desses ambientes, é possível sentir a música alta, o ritmo efervescente, o corpo-a-corpo que a batida do funk pede, e, sobretudo, a euforia proporcionada pelos bailes.

Há 16 anos radicado no Rio de Janeiro, a rica cultura envolta aos morros e favelas capturou o primeiro olhar de encantamento do francês. A partir disso, Vincent mergulhou de cabeça nessa realidade, encabeçando, de 2002 a 2008, o projeto cultural Olhares do Morro, com o intuito de oferecer aos jovens da favela Santa Maria (RJ) a oportunidade de estudar fotografia e de desenvolver suas próprias expressões. Dali, grandes fotógrafos nasceram e se profissionalizaram, ajudando a levar o seu projeto adiante.

Documentando a cultura funk e das comunidades cariocas, suas fotografias já estamparam jornais internacionais como o New York Times, National Geographic e Le Monde, além de terem ocupado espaços de exibições no Maison Européenne de la Photographie (MEP), no Museu de Arte do Rio e na galeria Blam Projects, em Nova York, entre outros. Aos poucos, Vincent tem conseguido mostrar seu trabalho e tem mudado o estereótipo da cultura dos morros e favelas frente ao mundo.

Baile do Boqueirão do Passeio, Centro, Rio de Janeiro (2010) 

A Anual Design conversou com o fotógrafo e traz uma entrevista exclusiva sobre seu trabalho. Confira:

Anual Design- Como se deu o início do seu interesse pela cultura das favelas e dos bailes funks?

De 2002 a 2008, desenvolvi o projeto “Olhares do Morro” – um atelier de expressão fotográfica no topo do Morro Santa Marta, em Botafogo –  com o intuito de formar jovens fotógrafos para influenciar na imagem das favelas, já que o espaço dado, em particular na mídia, é restrito aos retratos da violência, do tráfico e das chacinas, e que configura mais uma forma de opressão para quem mora nas favelas.
A criação do projeto veio do desejo de abrir janelas “no asfalto”, nos espaços ditos “nobres” da cidade para o público conhecer e se abrir à riqueza, à potência e energia que a juventude e população das favelas possuem. O espaço de criação fotográfica “Olhares do Morro” foi concebido como uma mediação neste processo de longo prazo. Para mim, promover uma estratégia coletiva de afirmação visual das favelas do Rio junto com os moradores fazia mais sentido do que fotografar sozinho o território sensível da favela.


Projeção- Morro Santa Marta, Rio de Janeiro (2005)
O “Olhares“ foi a minha primeira paixão brasileira. O interesse pelo funk surgiu progressivamente. Eu morava em Santa Teresa e dava para ouvir os graves da equipe de som no baile do Morro Santo Amaro, fazendo tremer as paredes dos prédios, do outro lado do vale. As letras dos funks eram muito fortes, sejam de conotações sexuais ou guerreiras, os chamados “proibidões”. Esse tremor vindo do baile soava como “trombetas de Jericó” contemporâneas carregando uma verdade muito crua, que abala a cidade, sua consciência burguesa e a sua hipocrisia. Em 2005, comprei um CD do Mr. Catra, chamado "O Fiel", um verdadeiro guia de sobrevivência do trânsito entre a favela e o “asfalto”, quais mandamentos valem até hoje.

Certa vez, fui parar na porta de um baile funk na Zona Oeste do Rio, "O Castelo", na favela de Rio das Pedras. Por sorte, os donos do baile me autorizaram a fotografar e, ali, encontrei algo que viria a me ocupar por muito tempo. Em seguida, descobri o Baile do Boqueirão, perto do Aeroporto Santos Dumont, perto também de onde eu morava, na interseção estratégica do Centro com a Zona Sul. Em meados dos anos 2000, o Baile do Boqueirão era uma plataforma de comunicação entre funkeiros da elite e das favelas das zonas Norte e Sul. Proprietário da equipe de som “Curtisom Rio” e organizador do baile nas noites de sábado, Reginaldo Hermínio, tal como um curador, recebia todos os MC’s, bondes de dançarinos e outras equipes de som vindos do Rio de Janeiro inteiro para mostrar a exuberância da cena. Quando a polícia proibia ou invadia os bailes nas favelas próximas, o refúgio seguro e a trincheira dos funkeiros era o Boqueirão do Passeio. Foi lá que conheci muitos MCs, DJs e bondes de dançarinos. Foram esses protagonistas do funk carioca que me convidaram para ir em suas respectivas favelas e bailes.


Clique aqui e assista neste episódio do Rolê Design onde o próprio Vincent Rosenblatt conta como começou sua paixão pelo funk e pelo Brasil: https://youtu.be/RxIScFrUtsI


Desmontagem da eqquipe de som Pitbull - Morro dos Prazeres, Santa Tereza, Rio de Janeiro (2007)

Anual Design- Qual é o maior desafio em trabalhar a estética dentro da favela e dos bailes funks?

Vincent Rosenblatt- O primeiro desafio seria de ser capaz de conseguir capturar toda beleza ali presente. Em um baile de comunidade, no seu auge, cada participante tem uma função. Do frequentador ao DJ, como num teatro coletivo onde cada um interpreta o seu papel, sendo atravessada por conflitos, alianças, rivalidades, solidariedades e também muita opressão. É como se Shakespeare estivesse sendo reinterpretado a cada final de semana. Amor e guerra; sexo e traição; batalhas e jogo de poder. A quadra do baile é como a assembleia da Grécia antiga, a Ágora, onde todos os acontecimentos estão em pauta, cantados e dançados em coro, como no teatro dos primórdios.

Baixinha- Santa Marta, Rio de Janeiro (2005)

O maior desafio é resgatar um espaço de legitimidade para a fotografia num lugar onde o ato fotográfico, em particular documental, é percebido como aliado de uma imprensa que somente serve aos interesses e o ponto de vista das classes mais abastecidas e foi frequentemente um instrumento de denúncias que trazem mais destruição, violência, morte em potencial, do que já acontece. A fotografia como um “estraga prazeres” que poderia acabar com o pouco lazer da comunidade. A visão do fotógrafo como inimigo, como um “X-9”.

Com o martelamento de décadas de matérias negativas e preconceituosas na imprensa local, os funkeiros dos bailes de favela incorporaram a ideia de proibir suas representações através de imagens. A consequência é a sub-representação de gerações de juventudes das favelas e periferias cariocas.

Baile do Andaraí - Zona Norte, Rio de Janeiro (2005)

Para superar essa barreira simbólica, fui constantemente ajudado pelos próprios funkeiros, quais me chamaram por uma década bailes adentro. Cada comunidade tem seus DJs, MCs, dançarinos, produtores culturais, organizadores de bailes, que gozam de independência e da confiança até do "movimento" (tráfico ou milícia). O que esses protagonistas da cultura local fizeram foi apostar a vida deles no fato que podiam confiar em meu genuíno interesse em mostrar esse povo funkeiro, que luta para poder continuar a desenvolver a sua cultura, que sobrevive entre a presença do tráfico de um lado e do outro a repressão da polícia, além da rejeição de uma grande parte da sociedade

Acredito que minha função nesse meio serviu melhor de documentação da memória histórica por parte dos protagonistas quais tinham a sensação que aquilo podia parar, e não teria nada sobrando daquele rico universo. Desde o início do meu trabalho, disponibilizo as imagens para os funkeiros, que as usam em todas as suas redes sociais para a sua divulgação própria. Esse trabalho continua há mais de uma década, não só porque é um desejo meu, mas pelo fato de eu me deixar levar para onde as pessoas me chamam. Também fiz regularmente projeções nos próprios bailes e favelas, uma forma de apresentar o trabalho para centenas de pessoas de vez, como uma exposição efêmera ao ar livre, além de ajudarem muito a conquistar este espaço de liberdade para um uso positivo da fotografia nos bailes.

Projeção "Rio Baile Funk" na Lapa, Rio de Janeiro (2015) 

Anual Design- Como fotógrafo, o que seduz o seu olhar?

Vincent Rosenblatt- Costumo pensar que não escolho temas de pesquisa, mas que são eles que me escolhem. Acontece uma identificação instantânea, como um amor à primeira vista. Aconteceu quando adentrei o meu primeiro baile funk, quando vi pela primeira vez a saída de Bate-Bola, quando cheguei pela primeira vez em uma festa de aparelhagens em Belém do Pará.

Turma do Índio- Guadalupe, Rio de Janeiro (2014)

Crocodilo- Belém do Pará (2017)
A posteriori, tento “racionalizar” e entender melhor esses afetos repentinos e duradouros. Os meus campos de trabalho têm em comum o fato de serem situados em territórios periféricos, porém têm uma centralidade na produção de sentido, do novo, de serem vanguardas criativas, protagonizados por jovens oriundos de setores da população oprimidos ou odiados pelas elites locais, frequentemente cegas às maravilhas e potências que acontecem do outro lado de cidades segregadas. O funk carioca, com suas letras ousadas, costuma ultrapassar o limite do que é possível dizer em uma música, o seu efeito libertador vem também da verdade crua do “indizível” e que é proferido. A fotografia tem um papel semelhante ou paralelo, ela amplia os limites do olhar, do que é considerado como “belo”, anexa novos domínios do real como dignos de registro.

Vejo que procuro também por momentos de catarses, seja advinda do som, da dança ou ainda da monumentalidade de aparelhagens que parecem uma nova cosmogonia de semideuses idólatras; da explosão dos fogos, cores e perfumes nas saídas das turmas de Bate-Bolas. Em um clique, tento encapsular o máximo de intensidade vivida, tento fazer imagens fiéis à essas emoções testemunhadas por mim.

O bufalo do Marejó- Belém do Pará (2016)
Anual Design- Suas fotos são mais admiradas fora do Brasil do que dentro. Qual é sua opinião sobre isso?

Vincent Rosenblatt- Uma matéria recente de Daniel Dantas para a Folha de São Paulo sintetiza uma possível resposta: As artes visuais seguem sendo, provavelmente, a mais branca e elitista das linguagens artísticas, e o espaço para os negros, seja como artista, seja como temática, encontra-se ainda muito restrito”.

Respingam sobre o meu trabalho os preconceitos que atingem diretamente quem eu fotografo. Porém, sinto que as coisas estão mudando lentamente, tem tido um interesse um pouco maior de brasileiros por minha obra. Mas nunca me faltou o apoio de quem eu fotografo, do mundo funkeiro, dos bate-bolas, da cena das aparelhagens, dos produtores e frequentadores das Festas Pretas.

Baile do Boqueirão, Rio de Janeiro (2007. Fotografia parte da exposição "Histórias Afro Atlânticas", no MASP 

Expo "Rio Baile Funk"- MEP (Maison Européense de la Photographie), Paris (2011)

Anual Design- Você concorda com a frase "O povo gosta de luxo, quem gosta de pobreza é intelectual", do carnavalesco Joãozinho 30?

Vincent Rosenblatt- Concordo. Se formos pensar pelo lado material e financeiro, as fantasias dos bate-bolas custam de R$800,00 a R$2.500,00 para serem fabricadas, um luxo que um povo de baixa renda se esforça para fazer acontecer cada ano. Estudos da Fundação Getúlio Vargas (FGV) pesquisaram justamente o valor econômico gerado pelos bailes funks, como fizeram também em Belém do Pará com o Tecnobrega. No Brasil, todas as periferias criaram estilos musicais com cadeias produtivas autônomas, independente do mercado formal, gerando milhões de reais mensalmente, mas nem todos enxergam essas criações como uma forma de produzir riqueza mas sim como algo supérfluo e que é  próprio da criação de sentidos para a existência humana.

Afinal, depende onde se enxerga o luxo, a riqueza. Luxo, para mim, são os dançarinos do funk carioca, a criação de novas formas de ser; a reinvenção permanente e a transmissão da ancestralidade; o desenvolvimento de técnicas sociais e culturais de resistência à séculos de opressão de todos os tipos.

Comando Zuação, Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro (2012)

Clovis adormecido, Cinelândia, Rio de Janeiro (2017)


Conheça mais sobre o trabalho de Vincent Rosenblatt pelo site http://www.vincentrosenblatt.net/ ou através de seu instagram @vincerosenblatt/




COMENTÁRIOS

  • Celso De Oliveira Silva - 13/09/2020 11h53
    MAGNIFICO, SURPREENDENTE ESSE TRABALHO!
  • Julia Abreu - 15/10/2018 21h06
    Lindo trabalho. Acho genial o trabalho trabalho do Vincent junto da arquitetura, ele dá personalidade a qualquer espaço. Estamos precisando mais disso. Parabéns.
  • Patrick Sabatier - 06/10/2018 15h15
    Muito bom ! De parabéns !

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