SÉRGIO RODRIGUES, A POLTRONA MOLE E A PRAIA DE IPANEMA

Sérgio foi a verdadeira personificação do lifestyle brasileiro no design de mobiliário.

Publicado em: 06/09/2014

O Grande Mestre dos bigodes retorcidos nos deixou.
Sérgio Rodrigues foi, ao lado de Joaquim Tenreiro e José Zanine Caldas, um dos responsáveis pela construção da identidade do design nacional. Muito mais do que um precursor, ele durante mais de cinco décadas influenciou, direta ou indiretamente, todos os designers que vieram depois dele e, de certa forma, até mesmo a nossa arquitetura. Ele é mais do que a pedra fundamental, tudo que entendemos e identificamos como design brasileiro tem um pouco de sua alma. E, assim como todo grande artista, o legado que ele deixa é praticamente inseparável de sua personalidade.  


                


Sérgio fez parte de uma geração de brilhantes, como Vinícius de Moraes, Nelson Rodrigues, Sergio Porto, Millôr Fernandes, Sérgio Bernades, Oscar Niemeyer, Danuza Leão, Tom Jobim e outros grandes. Todos eles tinham algo em comum: um misto de elegância, inteligência, um senso de humor docemente irônico e um fortíssimo otimismo. Estas personalidades, na contra mão do "complexo de vira-latas" que imperava, forjaram de forma despretensiosa os alicerces do que hoje entendemos como nossa identidade brasileira. Assim como Tom e Vinicius fizeram na música, e Oscar na arquitetura, Sérgio foi a verdadeira personificação do lifestyle brasileiro no design de mobiliário.
Eu tive o privilégio de estar na companhia do arquiteto umas cinco ou seis vezes, sendo três delas para entrevistá-lo, nas quais Sérgio recebeu-me no seu ateliê/escritório no Bairro de Botafogo, no Rio de Janeiro. Muito mais do que a sua brilhante inteligência, a gentileza e a generosidade do mestre eram realmente espantosos. Cada entrevista durou cerca de duas horas, pois ele gostava de conversar sem pressa, contar várias piadas (e algumas pequenas auto-gozações) e não se limitava a apenas responder as perguntas: contava todo assunto com uma gigantesca riqueza de detalhes. Todas as vezes que me encontrei com ele, fiquei emocionado de ver um gênio com uma  simplicidade tão sincera.
Meu  primeiro encontro foi durante a gravação de um vídeo para um DVD de entrevistas da Anual Design, em 2005. Já a última entrevista, há 4 anos, foi para um livro que editamos em Brasília à convite do CasaPark e da Editora Senac, 50 anos de Arquitetura. À pedido de Ivan Valença, o idealizador da projeto, a publicação teria que ter uma menção ao trabalho de Sérgio, para que de alguma forma homenageasse aquele que “vestiu” por dentro as obras da então nova capital federal. Criamos então um material complementar sobre design nacional.  

               
Poltrona Moleca, a primeira versão da Mole, com as pernas mais finas e tamanho um pouco menor.

Imagem de proriedade de Beth Santos Galeria Legado Arte


Nessa ocasião, um caso que ele me contou paralelamente à entrevista, chamou muito a minha atenção pelo inusitado e cômico: é a história do lançamento da Poltrona Mole. O caso se passou em um período de dificuldades e incertezas para o arquiteto, e agravadas pelo fato da estética revolucionária das peças de Sérgio serem, nos idos anos 1960, de difícil leitura pelo público em geral (segundo ele próprio, que recontava esse período com uma auto-ironia bem carioca das antigas, teve gente que chamou a Mole de “cama de cachorro”!) Pois bem, na ocasião, um fotógrafo amigo do designer, convidou-o para um ensaio fotográfico de suas peças em plena praia, tendo o mobiliário em primeiro plano e, ao fundo, o mar de Ipanema. Móveis na areia e o fotógrafo começou a clicar.Porém, sem que os dois notassem, a maré subiu e uma onda mais saliente, para o desespero de todos, encharcou as peças, que ainda eram protótipos. Chateado e triste, voltou para casa e contentou-se com a tentativa frustrada de divulgar o seu trabalho. Qual não foi a surpresa dele, no dia seguinte, ao pegar o jornal e ver na então editoria de Cidades a notícia de “arquiteto que usa móveis para fazer oferenda a Iemanjá”!!!
Se a “campanha forçada” que acabou virando chacota deu certo, ele não me contou, mas mesmo depois de premiada no Salão Internacional do Móvel, em Milão, a poltrona Mole demorou para emplacar no gosto mais amplo e ser entendida como referência em Design. Demorou tanto que até plagiada foi, e o Sérgio, ironicamente, perdeu os direitos sobre a fabricação dela, uma vez que não tinha preocupado-se em patenteá-la. Sorte a nossa, pois ele teve que reinventar sua cria: a nova versão da Mole (antes se chamava Moleca) que é a que conhecemos, ganhou curvas, sex appeal e a merecida notoriedade com o tempo. 
Sorte ainda maior ele poder ter vivido o suficiente não somente para ver sua criação celebrada e reconhecida, mas também por colher os louros de um trabalho genial que foi literalmente contra a correnteza e hoje é um importante capítulo na história do design. Do Moma a praia de Ipanema.

Sérgio e outra obra prima de sua autoria : A poltrona Chifruda
 , criada em 1962.


ENTREVISTA COM SÉRGIO RODRIGUES, 
Separamos para você esta entrevista, publicada no livro 50 anos de Arquitetura. 

Jean Bergerot: Qual a influência da arquitetura de Brasília no mobiliário brasileiro?
Sérgio Rodrigues: Na época da construção de Brasília eu já estava criando meus móveis, movido pelo desejo de fazer algo compatível com a arquitetura brasileira, então já reconhecida e admirada em todo mundo, por isso não vejo no meu trabalho influência da arquitetura do Oscar. Algumas pessoas, quando criei a poltrona Oscar, disseram que havia me inspirado no Palácio da Alvorada, por um pequeno detalhe que se assemelha a uma coluna do Palácio, mas a poltrona foi criada em 1956 e o Alvorada, se não me engano, em 1958. Eu não posso honestamente dizer que não tive influência de outros porque todos
sofremos influências, mas realmente, nenhuma de minhas peças tem semelhança com o que se fazia na Europa naquela época.

JB: E o nome Oscar, veio depois que o senhor detectou essa coincidência?
SR: Eu criei essa poltrona para a sede do Jockey Club Brasileiro, na Avenida Rio Branco, a pedido de sua diretoria, para uma sala de jogos, mas eles não aceitaram, e para minha decepção a devolveram com o argumento de que era muito moderna. Aborrecido, coloquei-a na vitrine de minha loja e em uma das visitas do Oscar, que sempre passava por lá a procura de móveis para o Catetinho, mostrou-se interessado e comprou duas para sua filha que ia se casar. Fiquei entusiasmado e decidi batizá-la de Oscar em sua homenagem, do mesmo modo que homenageei Lucio Costa, dando seu nome a uma cadeira que ele elogiou dizendo: “essa é a primeira cadeira com uma maneira de execução moderna e com o espírito tradicional brasileiro”.


Croqui da poltrona Oscar, batizada primeiramente de Poltroninha Jockey,


JB: Dentro dos Ministérios, na parte administrativa de Brasília, o senhor colaborou com outros móveis sob medida?
SR: Quando da inauguração dos Ministérios, recebi um convite do ministro Vladimir Murtinho e do arquiteto Olavo Redig de Campos que trabalhavam em parceria no Itamaraty, para criar uma mesa para o ministro porque as disponíveis eram mesas Luís XV e Luís XVI, de valor, porém, incompatíveis com a arquitetura do prédio. Fiz a mesa em jacarandá e foi muito apreciada. Foi encomendada outra igual, em Peroba, que deixei em minha loja, onde foi vista pelo embaixador Hugo Galtier, que acabara de comprar o Palácio Dória Pamphili para nele instalar a sede de nossa embaixada em Roma, e que ao examiná-la disse: “quem criou essa mesa vai comigo para Roma fazer os móveis para a nova embaixada”. Foi assim que, em 1960, passei vários meses em Roma, mas isso já é outra história.
Logo depois, o Ministro Horácio Lafer convidou-me para pensar e criar móveis que tivessem sintonia com a identidade brasileira e de estilo clássico. Por volta de 1966, a convite do Oscar e do ministro, fiz variações da mesa, chamei-a de Itamaraty para os ministros e fiz uma linha de móveis completa com poltronas, cadeiras e linha para recepção. Enfim, fiz todos os móveis do Ministério das Relações Exteriores e algumas peças, junto com outros arquitetos, para outros ambientes do Palácio.
Fiz também, a convite do Oscar, as poltronas das três plateias do Teatro Nacional e do Cine Brasília. Um dia, da Itália, o Oscar telefonou pedindo para eu fazer o mobiliário da residência do Primeiro Ministro e eu, entusiasmado comecei a trabalhar, mas como não me deram mais nenhuma notícia, procurei informações e tive uma grande decepção ao constatar que os móveis já tinham sido comprados de outra pessoa em Brasília, certamente à revelia do Oscar.

JB: Qual a influência que o Sr. acredita que deixou para o mobiliário brasileiro? As linhas simplificadas, a opção pelo uso da madeira?
SR: Tenho vários sucessores nessa nova geração que estão, com seu talento, abrindo portas para o reconhecimento do design brasileiro no mundo. Cada um desses jovens tem no seu trabalho características e identidade marcantes e de mim só herdaram o entusiasmo em fazer alguma coisa brasileira, com caráter brasileiro. Quando conheci os trabalhos de Carlos Motta, por exemplo, fiquei impressionado por serem diferentes dos móveis clássicos, terem linhas simplificadas, linhas mais puras, sem sofrer influências de modismos e tendências.

Entrevista concedida em setembro de 2010

Aqui no nosso portal já falamos sobre a história da poltrona Chifruda e de sua reedição, das luminárias criadas por ele e que também foram repaginadas e também celebramos o aniversário do arquiteto.    

COMENTÁRIOS

  • Mario Nobre - 04/06/2015 17h17
    Muito boa matéria e entrevista
  • Fernanda Almeida - 09/09/2014 21h30
    Parabéns pela bela entrevista Jean!
  • Juliana Carrijo Melo Maluf - 03/09/2014 21h25
    Brilhante reportagem. . Sou fã número 1 do Sérgio Rodrigues. Para mim o melhor arquiteto que representa o nosso Brasil . Parabéns!!!

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