Sou carioca, filha de estrangeiros. Minha mãe é peruana e artista plástica. Estudou serigrafia e pintura na Escola de Artes Visuais do Rio. Lembro-me de acompanhá-la às aulas e de como aquele ambiente lúdico das artes me encantava. Meu pai é italiano, físico, historiador e pesquisador. Nasceu em Fiume, cidade que antes e durante a Segunda Guerra pertenceu à Itália, fronteira com a Iugoslávia, e, hoje é uma cidade da Croácia. É dele o sobrenome Mattievich. Ao final da Segunda Guerra, quando ele tinha dez anos, foi com seus pais para Lima, Peru, em um avião de refugiados. Lá ele cresceu, estudou e viveu por 20 anos. Veio então para o Brasil, casado com minha mãe, com uma bolsa de estudos da Ford Foundation para ficar por um ano. Acabou permanecendo por aqui, onde nascemos minha irmã e eu.
Cresci rodeada por livros. Nas minhas memórias infantis, lembro de meu pai sempre voltar pra casa no fim do dia com mais um embrulho de papel jornal e corda de sisal. Eram “novos” velhos livros. Por muitas vezes, o acompanhei ao Centro da cidade no Rio de Janeiro e passávamos horas percorrendo sebos e livrarias. Enquanto ele fazia suas pesquisas, eu mergulhava no universo sensorial daqueles labirintos de papel. A primeira sensação que me vem à memória é a olfativa. Esse cheiro dos livros velhos, que preenchia o ambiente, era um cheiro familiar que também estava presente no escritório do meu pai. Eu gostava de ficar horas folheando, admirando as capas rígidas e as costuras, os marmorizados das guardas, as iluminuras, as capitulares, as figuras, os blocos de texto (apesar de muitas vezes não entender, pois eram em latim ou em outro idioma que me fugiam à compreensão). Gostava de observar o desenho das letras, a tipografia, a textura do papel. Também gostava muito de perceber as manchas que o tempo tinha imprimido naquelas páginas robustas e os longos caminhos que as traças tinham percorrido, deixando seus túneis. Adorava investigar até onde haviam chegado.
Os livros eram o universo do meu pai e uma das formas que eu tinha de me aproximar dele era justamente esse interesse em comum. Creio que assim surgiu em mim o respeito e a admiração pelos livros.
Sempre fui apaixonada por arte e natureza. Fiz vestibular para Biologia e Desenho Industrial no mesmo ano. Passei nos dois, mas escolhi a segunda opção por acreditar que ali teria mais campo de trabalho. Logo no segundo período consegui uma bolsa e um estágio numa agência de publicidade. Eu trabalhava no estúdio, no tempo em que as agências ainda não tinham computador e os layouts eram feitos à mão. Desenhava as fontes dos textos dos layouts com pincel e guache, finalizava os trabalhos com fotocomposição, caneta nanquim, cola de borracha e régua T, e montava as pranchas para apresentação. Adorava aquele universo de tintas, pinceis, papéis e Letraset. Ao final dos três meses de estágio fui contratada e ali fiquei por três anos. Nesse período, vi fascinada os “supercomputadores” Macintosh serem instalados na agência e fui enviada às gráficas para aprender a mexer naqueles programas que viriam a substituir todo aquele trabalho artesanal do estúdio. Esse primeiro emprego foi uma verdadeira escola, uma oficina prática onde aprendi muito sobre o universo da tipologia, composição de cores, proporção e equilíbrio.
Posteriormente, trabalhei em outra agência de publicidade e num escritório de design. Comecei a fazer capas de livro como freelancer, para um amigo editor. Aos poucos o volume de trabalho foi aumentando e optei por abrir o meu próprio escritório. Trabalho no mercado editorial há aproximadamente 13 anos. Nesse período, conquistei o reconhecimento tanto de editoras quanto de autores, o que é extremamente gratificante.
Meu processo criativo é sofrido. Sofrimento pela busca do conceito, da ideia. Após ler algum material sobre um livro, ou o próprio livro, inicio uma pesquisa por imagens que possam ser utilizadas. É comum começar essa pesquisa sem saber exatamente o que buscar. Essa é a parte angustiante. As imagens vão costurando as ideias até que surge um conceito. A partir daí, o processo começa a ficar mais prazeroso. É a materialização da ideia. Ao final, entram os estudos de cor, as vinhetas e os recursos para enriquecer a imagem, além do estudo de fontes. Também tenho o cuidado de não esquecer que o livro é um objeto tridimensional e sempre trabalho o design mantendo a unidade entre capa, lombada, contracapa e orelhas.
Não é comum para o designer ter contato com o autor. É uma maneira da editora filtrar a ansiedade dos envolvidos e cuidar para que a capa resulte num trabalho belo e comercial. Porém, em alguns casos, a aprovação da capa também é acompanhada pelos autores.
Enquanto lia o original para fazer a capa de Inês da Minha Alma, da Isabel Allende, observei que a descrição da personagem principal me lembrava a mim mesma, em uma foto aos 18 anos. Resolvi fazer um layout utilizando essa foto, envelhecendo-a e manipulando-a para que parecesse antiga. Fiz também opções com outras imagens e mandei todas para a editora que as submeteu à autora. Fiquei feliz em saber que eu não estava enganada, ela também tinha gostado e escolhido a primeira opção.
Em 2008 fiz a capa do livro Por que os homens amam as mulheres poderosas? para a editora Sextante. Ilustrei com um homenzinho oferecendo uma rosa para uma grande bota feminina, que dá a ideia de uma supermulher. O resultado foi tão assertivo que em pouco tempo várias outras editoras plagiaram essa ilustração.
Em 1999, participei de uma concorrência para fazer a capa do livro do Mario Prata, pela Objetiva. Não gosto de participar de concorrências, mas quando li um trecho do livro a ideia surgiu instantaneamente na minha cabeça. Minhas Mulheres e Meus Homens era sobre as pessoas que passaram e deixaram alguma história na vida do autor. Pensei logo numa imagem afetiva, uma parede repleta de retratos. Tanto a editora quanto o autor adoraram o resultado e essa capa acabou me rendendo uma homenagem do Prata, em uma crônica no jornal O Estado de São Paulo. Depois, fiz várias outras capas de seus livros e, recentemente, quando se mudou-se para a editora Planeta, Mario Prata fez questão de que eu voltasse a fazer as capas de seus livros. Esse é o tipo do reconhecimento que faz valer a pena todo o sofrimento da criação.
SILVANA MATTIEVICH POR MARIO PRATA
Foi feita uma concorrência para a capa do meu livro (Minhas Mulheres e Meus Homens, nas livrarias na sexta-feira e eu prometo não falar mais nisso) e quando eu vi seis provas em cima da mesa, uma me puxou. E ficou sendo. Era também a escolhida da editora.
- De quem é?
- Uma menina nova. Modernérrima!
- Bonita?
- Casadérrima!!!
Depois conheci a Silvana e descobri que a Isa Pessôa, objetiva, tinha dupla razão. Modernérrima e casadérrima. E, por isso mesmo, encantadora.
Começamos a trocar e-mails profissionais sobre a capa. Põe fulano, tira fulano. Até que um dia alguém mandou um teste de insanidade para o correio dela e ela espalhou para a lista pessoal. Caiu aqui no meu computador.
Fiz e adorei saber quanto eu sou insano. Mandei para uns cem endereços. Uns 20 tiveram a coragem de me mandar de volta a própria insanidade. Adorei saber o nível de loucura dos meus amigos. Me senti bem normal.
E, antes de ontem, me encontrei com a Silvana aqui em São Paulo e perguntei quanto tinha dado o teste dela. Me disse que não tinha feito, que o computador dela isso e aquilo. Ah, é?, então vai lá em casa já, fazer.
Ela fez. Perto das minhas mulheres e dos meus homens mais chegados, ela estava num nível bom, digamos assim. Louca média.
E, como dois doidos profissionais, começamos a contar loucuras de um para o outro.
A dela:
- Você já ficou com a língua presa na geladeira?
- Como???
- Isso mesmo, com a língua presa na geladeira.
- O máximo que eu consegui foi fechar a porta do Simca Chambord do meu pai com um dedo lá dentro. Prendeu como, na porta? Fechou a geladeira e deixou a língua curiosa lá dentro?
- Não, foi porque eu abri a geladeira.
- O caso é mais grave do que eu pensava. Não estou a perceber.
- Um dia, eu tinha 12 anos, cheguei em casa lá no Rio, morta de calor, toda suada. Estava tão quente que eu abri a geladeira e fiquei lá agüentando o frio no peito. Como se isso não resolvesse, abri o congelador para ventilar mais ainda. E, como se isso ainda também não bastasse, resolvi chupar o gelo, aquele que fica grudado no congelador, sabe?
- Chupar, como?
- Meti a língua lá. E a língua grudou. Entendeu?, no gelo. Achei que logo ia desgrudar, mas percebia que, cada vez, sentia que ia ficando mais grudada. Tentei pegar a água prajogar, mas a minha mão não chegava lá na prateleira mais baixa da geladeira. Eu estava na ponta dos pés, com a língua presa lá em cima e começando a tremer de frio.
- E daí, e daí?
- Daí que eu comecei a gritar. Mas como eu estava com a boca aberta e a língua presa, o que a minha mãe ouvia lá da sala era um urro de monstro, uma coisa de doida mesmo. Tá ficando doida, menina?, e eu lá, grudada. E fazendo aquele som que você pode muito bem imaginar qual era.
- E daí, e daií - E daí que a minha mãe entrou e, ao ver a cena, eu grudada lá, começou a gritar mais do que eu. Ficamos as duas a gritar. Eu daquele jeito e ela gritando normal. Foi quando entrou o meu pai e viu a cena. Eu, grudada na geladeira, tremendo toda e a minha mãe desbaratinada no meio da cozinha. Minha irmãzinha entrou e perguntou: ela vai morrer, pai? Meu pai, não menos nervoso, jogou água pois Físico é e, pouco a pouco eu fui me desgrudando da geladeira. Mas durante uma semana a minha língua ficou um horror.
- É, dessas eu não tenho nenhuma pra contar.
São histórias como essa que estão no livro. Menos essa, que só soube na segunda-feira. Senão, estava.
Em tempo: a capa foi maravilhosa. Modernérrima e casadérrima.