O TRABALHO DE SILVANA MATTIEVICH

A história da carreira da designer e o segredo de algumas capas de livros que criou

Publicado em: 17/06/2015
Sou carioca, filha de estrangeiros. Minha mãe é peruana e artista plástica. Estudou serigrafia e pintura na Escola de Artes Visuais do Rio. Lembro-me de acompanhá-la às aulas e de como aquele ambiente lúdico das artes me encantava. Meu pai é italiano, físico, historiador e pesquisador. Nasceu em Fiume, cidade que antes e durante a Segunda Guerra pertenceu à Itália, fronteira com a Iugoslávia, e, hoje é uma cidade da Croácia. É dele o sobrenome Mattievich. Ao final da Segunda Guerra, quando ele tinha dez anos, foi com seus pais para Lima, Peru, em um avião de refugiados. Lá ele cresceu, estudou e viveu por 20 anos. Veio então para o Brasil, casado com minha mãe, com uma bolsa de estudos da Ford Foundation para ficar por um ano. Acabou permanecendo por aqui, onde nascemos minha irmã e eu.



Cresci rodeada por livros. Nas minhas memórias infantis, lembro de meu pai sempre voltar pra casa no fim do dia com mais um embrulho de papel jornal e corda de sisal. Eram “novos” velhos livros. Por muitas vezes, o acompanhei ao Centro da cidade no Rio de Janeiro e passávamos horas percorrendo sebos e livrarias. Enquanto ele fazia suas pesquisas, eu mergulhava no universo sensorial daqueles labirintos de papel. A primeira sensação que me vem à memória é a olfativa. Esse cheiro dos livros velhos, que preenchia o ambiente, era um cheiro familiar que também estava presente no escritório do meu pai. Eu gostava de ficar horas folheando, admirando as capas rígidas e as costuras, os marmorizados das guardas, as iluminuras, as capitulares, as figuras, os blocos de texto (apesar de muitas vezes não entender, pois eram em latim ou em outro idioma que me fugiam à compreensão). Gostava de observar o desenho das letras, a tipografia, a textura do papel. Também gostava muito de perceber as manchas que o tempo tinha imprimido naquelas páginas robustas e os longos caminhos que as traças tinham percorrido, deixando seus túneis. Adorava investigar até onde haviam chegado.



Os livros eram o universo do meu pai e uma das formas que eu tinha de me aproximar dele era justamente esse interesse em comum. Creio que assim surgiu em mim o respeito e a admiração pelos livros.
Sempre fui apaixonada por arte e natureza. Fiz vestibular para Biologia e Desenho Industrial no mesmo ano. Passei nos dois, mas escolhi a segunda opção por acreditar que ali teria mais campo de trabalho. Logo no segundo período consegui uma bolsa e um estágio numa agência de publicidade. Eu trabalhava no estúdio, no tempo em que as agências ainda não tinham computador e os layouts eram feitos à mão. Desenhava as fontes dos textos dos layouts com pincel e guache, finalizava os trabalhos com fotocomposição, caneta nanquim, cola de borracha e régua T, e montava as pranchas para apresentação. Adorava aquele universo de tintas, pinceis, papéis e Letraset. Ao final dos três meses de estágio fui contratada e ali fiquei por três anos. Nesse período, vi fascinada os “supercomputadores” Macintosh serem instalados na agência e fui enviada às gráficas para aprender a mexer naqueles programas que viriam a substituir todo aquele trabalho artesanal do estúdio. Esse primeiro emprego foi uma verdadeira escola, uma oficina prática onde aprendi muito sobre o universo da tipologia, composição de cores, proporção e equilíbrio.



Posteriormente, trabalhei em outra agência de publicidade e num escritório de design. Comecei a fazer capas de livro como freelancer, para um amigo editor. Aos poucos o volume de trabalho foi aumentando e optei por abrir o meu próprio escritório. Trabalho no mercado editorial há aproximadamente 13 anos. Nesse período, conquistei o reconhecimento tanto de editoras quanto de autores, o que é extremamente gratificante.
Meu processo criativo é sofrido. Sofrimento pela busca do conceito, da ideia. Após ler algum material sobre um livro, ou o próprio livro, inicio uma pesquisa por imagens que possam ser utilizadas. É comum começar essa pesquisa sem saber exatamente o que buscar. Essa é a parte angustiante. As imagens vão costurando as ideias até que surge um conceito. A partir daí, o processo começa a ficar mais prazeroso. É a materialização da ideia. Ao final, entram os estudos de cor, as vinhetas e os recursos para enriquecer a imagem, além do estudo de fontes. Também tenho o cuidado de não esquecer que o livro é um objeto tridimensional e sempre trabalho o design mantendo a unidade entre capa, lombada, contracapa e orelhas.



Não é comum para o designer ter contato com o autor. É uma maneira da editora filtrar a ansiedade dos envolvidos e cuidar para que a capa resulte num trabalho belo e comercial. Porém, em alguns casos, a aprovação da capa também é acompanhada pelos autores.
Enquanto lia o original para fazer a capa de Inês da Minha Alma, da Isabel Allende, observei que a descrição da personagem principal me lembrava a mim mesma, em uma foto aos 18 anos. Resolvi fazer um layout utilizando essa foto, envelhecendo-a e manipulando-a para que parecesse antiga. Fiz também  opções com outras imagens e mandei todas para a editora que as submeteu à autora. Fiquei feliz em saber que eu não estava enganada, ela também tinha gostado e escolhido a primeira opção.
Em 2008 fiz a capa do livro Por que os homens amam as mulheres poderosas? para a editora Sextante. Ilustrei com um homenzinho oferecendo uma rosa para uma grande bota feminina, que dá a ideia de uma supermulher. O resultado foi tão assertivo que em pouco tempo várias outras editoras plagiaram essa ilustração.



Em 1999, participei de uma concorrência para fazer a capa do livro do Mario Prata, pela Objetiva. Não gosto de participar de concorrências, mas quando li um trecho do livro a ideia surgiu instantaneamente na minha cabeça. Minhas Mulheres e Meus Homens era sobre as pessoas que passaram e deixaram alguma história na vida do autor. Pensei logo numa imagem afetiva, uma parede repleta de retratos. Tanto a editora quanto o autor adoraram o resultado e essa capa acabou me rendendo uma homenagem do Prata, em uma crônica no jornal O Estado de São Paulo. Depois, fiz várias outras capas de seus livros e, recentemente, quando se mudou-se para a editora Planeta, Mario Prata fez questão de que eu voltasse a fazer as capas de seus livros. Esse é o tipo do reconhecimento que faz valer a pena todo o sofrimento da criação.

SILVANA MATTIEVICH POR MARIO PRATA
Foi feita uma concorrência para a capa do meu livro (Minhas Mulheres e Meus Homens, nas livrarias na sexta-feira e eu prometo não falar mais nisso) e quando eu vi seis provas em cima da mesa, uma me puxou. E ficou sendo. Era também a escolhida da editora.
- De quem é?
- Uma menina nova. Modernérrima!
- Bonita?
- Casadérrima!!!
Depois conheci a Silvana e descobri que a Isa Pessôa, objetiva, tinha dupla razão. Modernérrima e casadérrima. E, por isso mesmo, encantadora.
Começamos a trocar e-mails profissionais sobre a capa. Põe fulano, tira fulano. Até que um dia alguém mandou um teste de insanidade para o correio dela e ela espalhou para a lista pessoal. Caiu aqui no meu computador.
Fiz e adorei saber quanto eu sou insano. Mandei para uns cem endereços. Uns 20 tiveram a coragem de me mandar de volta a própria insanidade. Adorei saber o nível de loucura dos meus amigos. Me senti bem normal.
E, antes de ontem, me encontrei com a Silvana aqui em São Paulo e perguntei quanto tinha dado o teste dela. Me disse que não tinha feito, que o computador dela isso e aquilo. Ah, é?, então vai lá em casa já, fazer.
Ela fez. Perto das minhas mulheres e dos meus homens mais chegados, ela estava num nível bom, digamos assim. Louca média.
E, como dois doidos profissionais, começamos a contar loucuras de um para o outro.
A dela:
- Você já ficou com a língua presa na geladeira?
- Como???
- Isso mesmo, com a língua presa na geladeira.
- O máximo que eu consegui foi fechar a porta do Simca Chambord do meu pai com um dedo lá dentro. Prendeu como, na porta? Fechou a geladeira e deixou a língua curiosa lá dentro?
- Não, foi porque eu abri a geladeira.
- O caso é mais grave do que eu pensava. Não estou a perceber.
- Um dia, eu tinha 12 anos, cheguei em casa lá no Rio, morta de calor, toda suada. Estava tão quente que eu abri a geladeira e fiquei lá agüentando o frio no peito. Como se isso não resolvesse, abri o congelador para ventilar mais ainda. E, como se isso ainda também não bastasse, resolvi chupar o gelo, aquele que fica grudado no congelador, sabe?
- Chupar, como?
- Meti a língua lá. E a língua grudou. Entendeu?, no gelo. Achei que logo ia desgrudar, mas percebia que, cada vez, sentia que ia ficando mais grudada. Tentei pegar a água prajogar, mas a minha mão não chegava lá na prateleira mais baixa da geladeira. Eu estava na ponta dos pés, com a língua presa lá em cima e começando a tremer de frio.
- E daí, e daí?
- Daí que eu comecei a gritar. Mas como eu estava com a boca aberta e a língua presa, o que a minha mãe ouvia lá da sala era um urro de monstro, uma coisa de doida mesmo. Tá ficando doida, menina?, e eu lá, grudada. E fazendo aquele som que você pode muito bem imaginar qual era.
- E daí, e daií - E daí que a minha mãe entrou e, ao ver a cena, eu grudada lá, começou a gritar mais do que eu. Ficamos as duas a gritar. Eu daquele jeito e ela gritando normal. Foi quando entrou o meu pai e viu a cena. Eu, grudada na geladeira, tremendo toda e a minha mãe desbaratinada no meio da cozinha. Minha irmãzinha entrou e perguntou: ela vai morrer, pai? Meu pai, não menos nervoso, jogou água pois Físico é e, pouco a pouco eu fui me desgrudando da geladeira. Mas durante uma semana a minha língua ficou um horror.
- É, dessas eu não tenho nenhuma pra contar.
São histórias como essa que estão no livro. Menos essa, que só soube na segunda-feira. Senão, estava.
Em tempo: a capa foi maravilhosa. Modernérrima e casadérrima.

COMENTÁRIOS

  • GUI BAMBERG - 31/03/2015 18h48
    Primeiro eu vi uma foto de uma mulher forte, bela, em vermelho. Pensei ser uma pintura pois a foto era pequenininha. Quando abri dei um like, novato que era em Instagram. Achei que era uma pintura e quis reconhecer o seu autor. Era foto. Silvana. Procurei conhecer melhor a sua arte e me encantei com o seu trabalho. Tenho o livro de Isabel Allende e sempre me fascinou a capa. É um prazer muito pessoal saber que reconheci uma obra tão fascinante, tão rica, cheia de significados. Uma obra internacional criada aqui mesmo. Vou ser repetitivo: sou um fá incondicional da sua obra, Silvana Mattievichi Braschi. Parabéns!
  • Eva. Blay - 07/08/2014 17h35
    Você da aula? Faz atelier?
  • Carlos André Gomes - 07/10/2013 15h51
    Na época da Faculdade de Desenho Industrial, Silvana se destacava numa sala onde praticamente todo mundo tinha bom gosto e sabia o que estava fazendo: não é pouca coisa. Desde o princípio dava pra ver que ali tinha algo diferente.
  • Ana Claudia Kruel - 21/03/2013 17h01
    A Silvana é uma pessoa de extremo bom gosto e isso, obviamente, está refletido em seu trabalho. Ela conseguiu algo difícil: aumentar o meu prazer pela leitura. Suas capas são especiais! Amo estar numa livraria e dar de cara com uma que me impressione pela beleza, abrir e confirmar que é dela. Essa menina merece todo o sucesso do mundo. Sou fã.
  • Caroline Prado De Azevedo - 21/03/2013 11h06
    Bela história Silvana! Reconheci logo seu trabalho através da super mulher da capa " Por que os homens amam as mulheres poderosas?" Com certeza outras mulheres também se virão nessa ilustração! Parabéns!!!!
  • Miriam Braschi - 21/03/2013 08h10
    Eu sou tua fã número um. Gosto muito de teu trabalho e sei de teu afão pela perfeição......sei de tua criatividade.....e das horas que passas trabalhando....não vou falar mais, pois precissaria muito espaço para fazélo.....além do mais vão falar que comentário de mãe não vale.... eu te amo, minha filha!

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