Lomografia e a possibilidade do acaso.

Mais que um modismo fotográfico, a Lomo se tornou uma filosofia de vida.

Publicado em: 25/03/2013
"Vou levando assim
Que o acaso é amigo
Do meu coração
Quando fala comigo,
Quando eu sei ouvir"

Los Hermanos



Nossa vida contemporânea é exata.
Exata, sem brechas e com poucos erros.
Buscamos isso durante décadas, aliás desde quando nos sentimos sapiens.
Carros que não engasgam, televisões com imagens digitais perfeitas, mensagens eletrônicas que    cruzam o globo instantaneamente, pesquisas feitas em milésimos de segundos tendo como resposta milhares de resultados, e mais uma infinidade de festejados avanços são mostra da nossa evolução tecnológica.
Paralelamente a isso há uma corrente que clama pelo resgate do analógico e seus rituais: o disco de vinil e seus chiados, carros antigos restaurados e “quentes” como os Rodsters (mesmo que de vez em quando afoguem), slow food ao invés de fast food ou de comida preparada no micro-ondas, cartões postais escritos à mão, som acústico, e por aí afora. Além dos nostálgicos de carteirinha (aqueles que sempre acham que o que passou era melhor), existe um grande grupo de pessoas  ̶  muitas delas sem uma nostalgia verdadeira, pois não viveram o mundo analógico de 20 ou 30 anos atrás  ̶  que enxerga de uma forma intuitiva que a vida muitas vezes está no acaso, no erro, na receita que deu errado e tornou-se outro prato, na carta escrita de próprio punho.
A aceitação do imperfeito como parte da vida, no entanto não é novidade. Muitos orientais acreditam na filosofia japonesa conhecida como Wabi-sabi, baseada na aceitação da transitoriedade e no entendimento de que o perfeito não passa de ilusão. Os seguidores desta maneira de pensar conseguem ver beleza onde pessoas menos criativas enxergam defeitos e, por isso, acabam sendo mais flexíveis. As manchinhas no rosto que muitos optam por tirar, as cicatrizes, o trincado no piso de cimento, o tênis naturalmente surrado, livros com eventuais pingos do café que você tomava enquanto lia exemplificam o Wabi-sabi. Os problemas do cotidiano, a morte e os vestígios deixados pela passagem do tempo são encarados de forma positiva, pois são fatos reais que vão acontecer conosco mais cedo ou mais tarde. O que cabe a nós é aprender com eles e conseguir enxergar o belo que existe em cada uma dessas etapas da vida.


Foto: Maria Ruban


FILOSOFIA COMO ESTÉTICA
Embora o  Wabi -sabi seja uma postura, uma linha de pensamento não é muito difícil imaginar sua derivação para a artes,e para o processo criativo de uma forma geral. A fotografia se encaixa perfeitamente dentro desta estética, principalmete uma das suas variações mais simples : a Lomografia.

A Lomografia, que aos pouco está conquistando uma legião de seguidores, é um estilo de vida que festeja o analógico. Que entende que o acaso, o errado ou o borrado pode nos mostrar as brechas e a vida por outro ponto de vista, assim como o Wabi-sabi. Esta moda começou no leste europeu, quando amantes da fotografia começaram a comprar e colecionar máquinas da imensa fábrica russa LOMO. Máquinas analógicas com os velhos e bons filmes de 12, 24 ou 36 poses que têm que ser revelados e ampliados.


Foto: Lesley Silvia

O que elas fazem? Pouquíssimas coisas a mais que a sua antiga máquina fotográfica (ou as de seus pais) fazia. Aliás, elas facilitam o erro, provocando efeitos aleatórios. Os ingênuos “efeitos especiais” são brincadeiras simples como um flash colorido em um modelo, como uma fotografia com dois objetos superpostos na mesma chapa, ou como um prisma que quadruplica a foto ou ainda uma lente olho de peixe que dá uma visão distorcida de 180º, de fundo de colher.


Foto: Maria Ruban

Hoje, esta comunidade está fortíssima, com seguidores, mandamentos e o melhor: resgatando a elegância e respeitabilidade que a fotografia acabou perdendo com a banalização do processo digital.
Para esta matéria contamos com vários colaboradores do mundo inteiro, entre eles a ucraniana Maria Ruban (http://www.flickr.com/photos/mariczka/) que conta na Internet sua vida em forma de fotos feitas com a Lomo.


Foto: Maria Ruban




Foto: Jean Bergerot

A Lomografia é uma para quem entende que não ter tudo sob absoluto controle pode ser uma experiência divertida, e que, ao tentar enxergar a vida nas brechas, pode, as vezes, ser um encontro com sua verdadeira alma.

COMENTÁRIOS

  • Daniela Fortini - 10/07/2013 13h31
    Muito legal, a filosofia wabi sabi, leve como a vida deve ser.
  • Maura - 12/06/2013 18h36
    Muito lindo mesmo.
  • Andréia Queiroz - 25/03/2013 00h58
    Texto incrível - e que me fez pensar na minha relação com as fotos (que tanto amo). Confesso que sou fã do "movimento Lomo", mas nem por isso deixo de me sentir frustada toda vez que revelo as fotos e vejo que não saíram como eu esperava, que não tenho controle do acaso. A estética Wabi-sabi pareceu ser bem interessante. Vou pesquisar mais a respeito e refletir sobre o imperfeito. Obrigada pelo texto. Parabéns, Jean!
  • Caroline Prado - 24/03/2013 21h12
    Entendo muito pouco sobre técnicas fotográficas, porém, adoro.... e adoro a cultura oriental em si. Wabi-sabi no meu entendimento é tudo isso e muito mais. Parabéns pelo texto enriquecedor e por sempre abrir os horizontes no campo do design, agregando a ele todos os sentidos e tudo o que o que envolve.
  • Claudia Montenegro - 24/03/2013 19h21
    Jean, adorei o texto, me trouxe um conhecimento que não tinha da Lomografia e da estética Wabi-sabi, mas que enquanto princípio é algo que já permeia o meu trabalho de formação e desenvolvimento de pessoas. Parabéns por mais esta sua iniciativa!!
  • Jeff Alcantara - 24/03/2013 17h06
    Excelente!
  • Hélio Albuquerque - 24/03/2013 16h42
    Que legal!!!!! Já faz algum tempo que li sobre a "estética" Wabi-sabi, que mesmo sem conhecimento já regia, inconscientemente, minha forma de olhar e perceber o mundo. Sempre fui um pouco avesso a "obrigações", ao "tenho que fazer" no lugar do "quero fazer". A tecnologia trouxe facilidades e ganhos indiscutíveis, mas com ela, a obrigação da perfeição é quase que um martelo em nossas cabeças.... Não há margem para o acaso, nem para o "imperfeito", que muitas vezes é o belo. A facilidade do fazer, refazer, retocar, descartar, nos roubou a captura do instante, dando-nos a obrigação de aceitar apenas aquilo que nos parece o ideal ou o perfeito. Na fotografia, isso é uma evidência lastimável. O efeito deixou de ser um erro, um descuido ou meramente um acaso e passou a ser meticulosamente inserido, pesquisado e montado. Perdemos a espontaneidade em prol de uma tecnologia, que é claro, é inquestionavelmente muito bem vinda. Não tinha ouvido falar no termo Lomografia, embora de alguma forma já observasse essa busca em alguns seguimentos... Fiquei imensamente feliz em ter conhecimento deste movimento que agora, deixou de ser intuitivo e passou a ser uma prática. Ano passado ganhei de minha cunhada uma máquina fotográfica que escondida no conceito vintage nada mais é que um convite essa corrente onde o acaso pode vir recheado com uma agradável surpresa. Adorei Jean!!!!

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